19.4.12

Uma história do carochinha


Em 1998 a Vokswagen lançou o impossivelmente redondo Beetle de nova geração, um carro tão moderno, antes de todos os carros modernos, que desde logo, e durante pelo menos uma década, figurou em diversos filmes, séries e produções fotográficas como o veículo de eleição num futuro genérico. Com um objecto tão liminarmente desprovido de arestas, tão ao gosto do design intemporal (que, por mais que quadratize, volta sempre ao mesmo, não é, Sr. Mégane?), o que fez a marca alemã? Esticou o capô - que ninguém lhe volte a chamar capô de fusca - e arredondou ainda mais a traseira, no limite do impraticável. Na próxima reincarnação, ou se saem com uma tábua de passar ou com uma esfera de duas portas, para a malta entrar e rolar com aquilo. Talvez um cruzamento improvável das duas coisas. O design tem as suas limitações, sendo a modernidade uma delas, no que às necessidades de consumo diz respeito. Este carro é um bom exemplo disso, mas, por essa mesma razão, e com mais ou menos retoques, continua actual e atraente em 2012.

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Desenganem-se aqueles que vêem neste anúncio uma antevisão do triunfo da common people. Isto na verdade era um aviso, uma ameaça, uma coisa ominosa. Reparem naqueles punhos, aquilo não é vitória nem determinação, é mesmo sinal de porrada da grossa. "Night of the Living Yugos", "Triumph of the Yugos" ou "The Day the Yugo Stood Still" são títulos que me vêm de imediato à cabeça. No dia em que precisasses de um Yugo estavas era fodido.

Os mais improváveis carros de rally

Daewoo Tico

Um Daewoo nos ralis era o equivalente a competir montado numa máquina de fax. Um Daewoo chamado Tico era enviar um fax de antemão com os preparativos para o funeral.


Ford Anglia

Apesar da longa e determinante contribuição do construtor norte-americano para a competição automóvel, há pelo menos uma mancha no currículo da Ford que dificilmente será limpa (enquanto houver internet). Esta.



  Lada 112

Com o design inspirado numa caixa de sapatos – a fazer o Fiat 131 parecer um prodígio de sedução estética – e a aptidão desportiva de um isqueiro Bic, este Lada continua a rir-se dos túneis de vento, visto que ainda hoje é fabricado. Consciente do potencial da máquina, o piloto colocou prudentemente na porta traseira a sinalética adequada.


 Renault 4 

A rainha de todas as latas e sonho húmido da geração de 70 também marcou presença ocasional nas provas de estrada. Sólida, fiável e com uns amortecedores do arco-da-velha, literalmente, a Renault 4 fiava-se na sua incrivelmente baixa velocidade para não capotar em todas as curvas.

 

Fiat Cinquecento

Para quem não estava atento quando o Cinquecento passou, informamos que passou um Ciquecento. Feio, lento e pequeno, muito pequeno, este prodígio de engenharia low cost da marca italiana podia ser facilmente confundido com um calhau rolante (decorado).


Citroën 2 CV

Uma década antes de a R4 dar um ar da sua graça nas curvas do Mónaco, alguém achou boa ideia pôr um par de cilindros e 425 cc a bombar off road. Acredite-se ou não, o estóico 2 CV, que na verdade tinha 12, foi concebido para uso duro, versátil e económico, pelo que fez todo o sentido esta opção. Na maratona Liège-Roma-Liège, em 1955, este modelo cumpriu o seu papel, tendo regressado ao ponto de partida por altura do fim de produção do 2 CV, em 1990.



Volkswagen Amazon

O Amazon, que era uma versão budget do Passat fabricada no Brasil e movida a álcool, participou a título oficial (e a gasolina) em alguns ralis internacionais, incluindo o de Portugal. Os resultados não ficaram para a história mas o modelo gozou de alguma reputação no continente americano, onde era visto frequentemente a espantar a bicharada nas Pampas argentinas.


Peugeot 505

A Peugeot pôs tudo a correr – excepto o 604, que não cabia nas rectas –, porque não o 505? Com um turbo e uma motorização capazes de consumir combustível no valor equivalente ao PIB do Liechtenstein (em 2009) a moverem esta carcaça destemida, tínhamos a demonstração última de que até os modelos familiares da Peugeot podiam fazer saltar a gravilha como se não houvesse amanhã. O que, tendo em conta o peso da coisa, era a única ocorrência de destaque.


Peugeot 104

Veja-se o caso anterior. Se apetrecharam o 404, o 304, o 306, o 309, o 205 e até o 106, por acaso achavam que o 104 não se tinha feito à estrada? Pois estavam enganados, a Peugeot até a mãe velhinha punha a correr e acautelem-se que devem estar neste momento a colar autocolantes naquela coisa eléctrica que parece ter sido concebida por uma garotinha tísica. O 104, na versão ZS Evo2, introduzia uma melhoria tecnológica que permitia ao piloto mover-se no habitáculo.


Volvo 904

Sim, o 505 era grande. Mas o 904, como o nome indica, era maior. Pior que isso, ainda compete na Suécia, onde a sua chapa sobredimensionada foi forjada por vikings sedentários. O horror: até existem versões de competição em cor-de-laranja! Este mamute da Volvo, que falhou o casting para as corridas locais de camiões, não temia terraplanar os caminhos de neve que teimavam em colocar-lhe obstáculos. Diz a lenda que quando corre um 904 em Gotemburgo, a terra treme na Nova Zelândia.


Opel Ascona 

Falando de carros grandes e estafermos, o modelo da Opel que, qual vilão do Harry Potter, ostenta “the name that shall not be spoken”, corria menos mal do que a sua dimensão e aerodinâmica (ou falta dela) fariam supor. Claro que a agressividade subiu de tom quando, vestidinho pela Rothmans, propulsionado pela Cosworth e com os magos Ari Vatanen e Walter Röhrl ao volante, o Ascona 400 saltou para a ribalta dos rallyes mundiais, tornando-se, de facto, o último carro de tração traseira a ganhar o campeonato do mundo (1982, com Röhrl). O belo roncar do seu motor ainda pode ser ouvido, para gáudio do público, em provas de históricos.


Daihatsu Charade

Entre os pilotos a quem calhou conduzir competitivamente esta máquina japonesa, apenas para serem confundidos com um pequeno (mas rápido!) animal silvestre, contam-se o queniano Guy Jack e o britânico Terry Kaby.
A Daihatsu, expoente da filsofia pequeninos mas jeitosinhos, ou não é o tamanho que importa mas sim o desempenho, para quem gosta de um bom par de analogias lúbricas, era marca para vencer a categoria em todos os rallyes disputados, tendo o Charade registado algumas prestações de relevo, como o 5º lugar à geral no Safari de 1993 (Jack), ou o 18º no RAC de 1990. Mais do que um construtor que chamou aos seus carros Cuore, Charmant, Consorte, Midget, Naked e Rocky, entre outras ofensas, alguma vez mereceu.
 

 

Fiat Panda

Após ter trilhado caminhos nunca antes percorridos por batráquios a motor, abrindo a estrada para mutações genéticas como o (Seat) Marbella, o Cinquecento e o Seicento – também conhecido na Guarda e em Viseu como o carro das sibilantes assassinas – o Panda regressou no século XXI para reclamar o seu legado. Agora com uma mala maior, rodas menos baixas e um tejadilho com menor propensão para cair a meio das especiais.



Yugo 45

O Yugo, mais do que um carro concebido, foi uma coisa que aconteceu, um pouco como os cogumelos à beira das árvores. Montado pela Zastava Koral na encantadora ex-nação da Jugoslávia, e baseado no Fiat 127, esta coisa má da indústria automóvel foi feita até 2008 (!), com muito poucas mudanças em relação ao contraplacado original. Exportado para os EUA a partir de 1985, rapidamente entrou para o imaginário humorístico norte-americano. O Yugo é ainda presença frequente, a par dos Lada, na paisagem da Sérvia e da Bósnia e Herzegovina.



Trabant

Sim, o bacamarte móvel da RDA também participou em demonstrações do capitalismo mais leviano. Não sei o que andou por lá a fazer, a não ser que já veio tarde para dar razão a Galileu, e desconheço qual a motorização, mas foi com certeza responsável pelo início do debacle da camada de ozono. Limito-me a registar o facto e a seguir em frente, na esperança de que tudo seja esquecido.
 


Renault 12

Os mais atentos à história dos rallyes lembrar-se-ão, decerto, de ver fotos dos inúmeros Renault 12 no Rally da Argentina, durante a década de 80, que, sem argumentos para entrar em despique com o cronómetro, faziam da sua extraordinária resistência e da experiência dos pilotos locais a razão de proezas como o 4º lugar em 1984, com Mario Stillo, atrás dos Quattro de Blomqvist, Mikkola e do herói local, o malogrado Jorge Recalde (que, por sinal, havia iniciado a sua carreira num R12 TL). Note-se que falamos da versão 1.3, não do 1.6 Gordini que nem Monsieur Renault Sport, Jean Ragnotti, conseguiu pôr a andar como deve ser. Carro digno do Museu dos Grandes Erros de Design, o R12 era um tanque de guerra que levava nas calmas uma família de 6 em permante quezília, na companhia de tachos, panelas, cestas, sacos, saquinhos e brinquedos pelas estradas da Beira Baixa fora, incluindo as temidas curvas da Moinheca, rumo à borda de Espanha. Eu sei, que estava lá dentro. Se fazia isto, o que seria um simples rally.

13.4.12

Votos de felicidade



 

Não, não, a felicidade está no Æbleskiver com peixe finlandês.

O Relatório Mundial sobre Felicidade, encomendado pela ONU à Universidade de Columbia, nos E.U.A., é mais uma peça para a “galeria de quantificações bizarras com cientificidade reduzida” que, deste feita, nos coloca na 73ª posição do rating anímico global. Coisa porventura tão ou menos útil do que relatórios universais sobre o Efeito da Electricidade Estática nos Aparelhos Domésticos, a Predisposição Aerofágica na Meia-idade ou a Frequência do Uso de Sibilantes em Discurso Formal. How very typical que, numa fatalidade cartesiana, sejamos pobrezinhos, logo, infelizes, arrastando os pés pelos últimos lugares das estatísticas que analisam a qualidade de vida até do ponto de vista extra-sensorial. Acho que merecíamos um lugar mais baixo. O 85º, o 92º, o 108º… ou mesmo o último, para fazer jus a um capital de consternação que ultrapassa limites geográficos e mentais, rumo aos aparelhos medidores ultra-sónicos dos investigadores norte-americanos. No mesmo estudo, os dinamarqueses, noruegueses e finlandeses registam índices de felicidade de fazer inveja aos personal trainers do Holmes Place. Por entre a neve, as ciclovias e as sandes de queijo panado, os nórdicos vêem a luz que o sol não lhes dá.
Quando estive na Finlândia há uns anos atrás não conheci um único nativo que gostasse realmente de lá viver – note-se que não é o mesmo que não gostar do seu país. Não conheci nenhum habitante de Helsínquia que gostasse da cidade. E muito menos um que dissesse “epá, estou com pouco dinheiro e este Verão vou ficar por cá, na minha casinha com acabamentos de alta qualidade e janelas sobredimensionadas, a desfrutar dos 26º de temperatura máxima, dos inúmeros parques amplos com relva bem tratada, a andar de bicicleta pela cidade sem levar uma trancada de um fogueteiro ou a esbarrar em peões desordeiros, em vez de ir viajar para o sul da Europa, África, Ásia ou um país exótico da América Central, como é habitual”. Conheci, isso sim, um jovem autóctone que me perguntou, com legítima curiosidade e uma nota de preocupação: “Why are you so poor?”.

Conclusão prática e empírica: a luz natural é sobrevalorizada e podes ter muitos votos de felicidade se os conseguires comprar.

Serco Prize







Anne Wilson


Emily Golden


Freddy Boo


Juste Kausaite


Liz Rowland


Matthew Richardson


Henry Billington

A peça abaixo fez-me lembrar a ideia do ano passado para o Serco Prize, "Visions of the Thames". Pena que a candidatura para o concurso de 2012 já tenha fechado, porque estava aberta a ilustradores de todo o mundo e a recompensa era muito generosa. O trabalho vencedor do ano passado - "Winding Through the City", de Anne Wilson - deu um merchandise engraçado, que os ingleses são uns tipos muito pragmáticos e têm umas libras para gastar.

12.4.12

A sardinhada do costume

 

A sardinha que venceu o concurso da CML para as Festas de Lisboa 2012 é gira. No meu pouco modesto entender havia propostas melhores entre as finalistas, num total de 3.526 entradas, mas a escolha recaiu nesta. Os autores são colaboradores da Brandia. E parece que do júri faz parte um responsável da Brandia. Enorme e subjectiva coincidência ou não, as reacções adversas são despiciendas, porque a viola devia estar no saco antes mesmo de a coisa começar. É um concurso de sardinhas da Câmara com desfile de popularidade no Facebook. Se neste país já muito pouca coisa tem significado, o que dizer de uma iniciativa que junta sardinhas e Facebook. A peça em causa até poderia ser a mais formosa, a mais inventiva e a mais ofuscante, aclamada universalmente pelas massas em delírio. Nestas circunstâncias, o aroma acre da desconfiança ficaria sempre no ar. Uma vez que não é (consigo, de repente, lembrar-me facciosamente de duas ou três que mereceriam a distinção), dão-se razões de borla a quem as quiser apanhar.

5.4.12

"La solitude"


“Je suis d'un autre pays que le vôtre, d'une autre quartier, d'une autre solitude.
Je m'invente aujourd'hui des chemins de traverse. Je ne suis plus de chez vous.”

(Excerto do poema de Léo Ferré)

Ilustração de Adam Niklewicz

Hard copy 55


Vejamos... Ena Hama, Dena Llhama, Sena Ohama, Oena Ohama, Lena Chama, Llena Chama, Pena Chama... Penso que podemos, pelo menos, estabilizar na chama.

Extremo pé esquerdo

  
Rui Moreira, aqui iluminado pela direita.

Rui Moreira, ao comentar a actualidade política portuguesa no Hoje da RTP2, muito austero e com aquele ar levemente contrariado, para além de dizer “repare” muitas vezes, também gosta de se referir ocasionalmente à “extrema esquerda”. Repare, a linha pronunciada do seu queixo confere-lhe uma seriedade a ter em conta quando dribla habilidosamente as perguntas que o comprometem. Essa questão não se coloca, repare, há vozes dissonantes que se comprazem em criar ruído em torno destes assuntos, não é uma problemática de certo ou errado, é provável que a intenção não fosse essa, se observarmos cautelosamente tiraremos ilacções diferentes, não é uma medida inadequada se tivermos em conta que este executivo se tem pautado pela coerência. E pimba, lá vem a extrema esquerda, que é aquele conceito inventado pela direita mais conveniente que obstinada, a plantar foices e martelos à medida do discurso e a evocar as sobrancelhas de Cunhal para meter medo ao vulgo. Ó senhor, a esquerda estrebucha diariamente no lodo neoliberal, onde a sua modéstia interventiva é pautada pela incoerência frequente e por uma tentativa auto-sabotada de manter a dignidade. Não vale a pena puxar a corda argumentativa ao ponto do risível. Quem é que, na era da multiplicação virtual e da dissolução ideológica, ainda acredita nisso? A “extrema esquerda” foi um ar que lhe deu há mais de trinta anos e a sua descendência está senil há pelo menos quinze. Por favor prossiga para um argumentário mais consentâneo com a espectacularidade pretendida. Veja bem, não há nada de mais extremo do que a direita do momento: romanesca, espalhafatosa e trágica.

Isto & Aquilo


Eu gostava de ter guito para continuar a seguir as desventuras de Mr. Jean, criação de Philippe Dupuy e Charles Berberian, num registo ternurento e familiar que dá vontade de ter sempre ao lado para consulta e eventual conforto. A série ganhou o prémio Alph-art no Festival de Angoulême e é um sucesso de público em França, onde o mercado de BD é uma realidade e, imagine-se, gera lucro. Pois, mas por cá estes livros são raridades proibitivas, e se não há apoio parental para a cultura, terei de imaginar o que vai acontecer ao casamento do Monsieur.

Eu vi um sapo


E você, já engoliu o seu hoje?

Dignidade


"It is such a difficult thing to do properly and so beneficially. Sometimes hanging on to your dignity doesn’t mean what you think it does.  Sometimes it means keeping quiet and waiting. It’s not a race, it’s a marathon."

Provando uma vez mais que se consegue encontrar migalhas nutritivas de alento nos sítios mais improváveis, desencantei esta grande verdade, formulada de forma certeira e concisa, por uma mocinha chamada Elaine Lui, que não é parva nenhuma e escreve (bem) sobre futriquices.

Ilustração de Marion Christopher Zacharaw

Mal du siècle


Quem precisa de amigos, quando se tem o Facebook.

Ilustração de Janusz Kapusta

Hungry like the Wolfe






Henry Wolfe, a.k.a. Henry Gummer, fez parte de uma banda chamada Bravo Silva e lançou um primeiro álbum a solo, em 2011, intitulado Linda Vista. Por acaso pensava que Wolfe, um trovador moderno com a convicção de tempos passados, gostava de associar palavras portuguesas de forma mais ou menos aleatória. Ao humor presumivelmente intencional de Bravo Silva sucede a linda vista que, na verdade, até é o nome de uma localidade na Califórnia. Há ecos longínquos de Sam Shepard na música de Wolfe ("If you're thinking of leaving, you're already gone", em "Third Act"), como há do Paris-Texas de Wenders (uma parceria com Ry Cooder faria sentido) e do imaginário de Edward Hopper (veja-se a capa do disco). Mas o universo de Wolfe é bem mais urbano e menos lânguido e introspectivo que o de Shepard, pelo menos para já. O pessimismo, a solidão e o humor, envoltos numa ténue neblina onde se pressente o sol, dão o mote aos acordes simples e a um sentimento límpido, como se ouve pouco nos dias que correm. Henry Wolfe poderá estar ainda à procura de um caminho inteiramente seu, mas o início é já bastante sólido. 

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